A sombra da memória

 A sombra da memória


Por Ellen Gabis


Crítica a partir do espetáculo “Memória Matriz”, da Cia Lumiato (DF), visto no 25º Cena Contemporânea, no Espaço Cultural Renato Russo.


Fotografia: Humberto Araújo e Jéssica Lima

O Distrito Federal abraçou novamente o Festival Internacional de Brasília – Cena Contemporânea, na sua 25ª edição, realizada em novembro do ano passado. Os espetáculos foram oferecidos nas cidades administrativas Varjão, Ceilândia e Taguatinga, de forma gratuita, e no Plano Piloto, centro da capital, foram realizados espetáculos pagos. 

Trata-se de uma ótima iniciativa para incluir as pessoas das regiões administrativas e uma ótima tentativa de sair da bolha de quem assiste teatro no Distrito Federal, mas me parece que a divulgação no Plano Piloto foi bem mais desenvolvida do que nessas regiões distantes do centro da capital, fazendo com que o público seja menor e permaneçam as mesmas pessoas frequentando o teatro. De qualquer forma, acredito que o Cena Contemporânea seja uma boa oportunidade de trazer pessoas que raramente vão ao teatro, para conhecer artistas regionais, nacionais e internacionais, que entregam uma ótima experiência para esse público não habituado. Um exemplo disso é o espetáculo “Memória Matriz”, da Cia Lumiato – um grupo criado em Buenos Aires e hoje sediado no Distrito Federal –, que tive a oportunidade de assistir no Espaço Cultural Renato Russo, em Brasília. 

“Memória Matriz” é uma montagem que fala sobre a relação de uma mãe e uma filha, a partir da  reflexão sobre o que seria se tornar mulher antigamente. É importante ressaltar que essa é a história e a vivência de duas mulheres brancas e que elas trazem a reflexão a partir dessa vivência em específico, ao falar de violência, de sonhos não alcançados e da dificuldade de conhecer a si mesmo.

O espetáculo conta com cenas marcantes que nos levam do riso à reflexão em questão de segundos; ele constroi uma viagem no tempo na qual é possível ver a memória, os desejos e a vontade de ser uma mulher livre, sem destino programado. A peça trouxe para a cena a feminilidade até mesmo nos tecidos que são utilizados em uma máquina de costura, projetados em sombra, por meio dos quais é possível ver o movimento da sombra e da atriz na boca de cena costurando, ao mesmo tempo. 

A intuição de conhecer o próprio corpo é abordada na peça de uma maneira descontraída, leve e engraçada; é possível ver a personagem filha passeando por um jardim de falos e, em seguida, os resquícios de uma dor jamais esquecida pela qual a personagem mãe tem que passar para constituir aquilo que era sagrado, uma família. É um espetáculo que chama bastante a nossa atenção por ser trabalhado a partir do Teatro de Sombra, uma das modalidades dentro do Teatro de Formas Animadas, e é muito bonito ver a grandiosidade ou a pequenez que um corpo-sombra assume no palco. A vida a partir daquela sombra que nos acompanha, a extensão do nosso corpo ou de um objeto, a ânima do inanimado. A forma como o espetáculo é pensado e realizado constitui um ponto que agrada bastante ao espectador. É possível ver muitos recursos dentro da obra, como um vestido de noiva gigante que vira uma tela de projeção e, também, com uma luz vermelha, sua transformação em um útero, carregando uma criança gerada através da dor e da falta de respeito, em um contexto no qual o  corpo de uma mulher foi utilizado como apenas como objeto. 

Outro ponto especial dentro desse espetáculo é a percepção de que existe uma história completamente corporal sendo contada através da sombra do corpo e do corpo, que em alguns momentos ficou em evidência, é uma montagem com uma mistura de linguagens e equipamentos. Deixo um destaque para a diretora de movimento Giselle Rodrigues, uma artista aqui do Distrito Federal e professora da Universidade de Brasília no curso de Artes Cênicas, que teve um olhar sensível para construção de movimento da sombra e do corpo-sombra no espetáculo. 

Um último aspecto a ser destacado no espetáculo é assistir aos artistas trabalhando com equipamentos de projeção de luz e de fotos; existe uma grande atenção ao se fazer teatro de sombra, é preciso  atenção por todo o espaço, saber utilizar a luz, os objetos e saber se colocar em cena. Deixo aqui minha última admiração por esses grandes artistas que estão em cena e por trás dela também, então assistam e se deixem ser afetados pela “Memória Matriz”, da Cia Lumiato.


FICHA TÉCNICA:

Direção: Ana Alvarado

Dramaturgia e Encenação: Soledad Garcia e Thiago Bresani

Intérpretes criadoras: Katiane Negrão I Soledad Garcia

Direção de Movimento: Giselle Rodrigues  

Trilha Sonora Original: Fernanda Cabral

Manipulação de luzes e retroprojetores: Soledad Garcia e Thiago Bresani 

Cenografia: Maria Vilar e Soledad Garcia 

Iluminação: Diego Bresani e Rodrigo Lelis 

Figurino: Soledad Garcia 

Assessoria Dramaturgia: Ana Alvarado 

Criação e construção de silhuetas e objetos: Soledad Garcia e Thiago Bresani

Realização: Cia Lumiato



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