UMA ILHA DE CURTA-CIRCUITOS
UMA ILHA DE CURTA-CIRCUITOS
Por Saulo Moreira
Crítica a partir dos espetáculos “Between me and you” de Martín Flores Cárdenas (Argentina) e “No hay banda” de Heidi Strauss (Canadá), vistos no 25º Cena Contemporânea – Festival Internacional de Teatro de Brasília
Fotografia: Romulo Juracy
O Festival Internacional de Teatro de Brasília – CENA Contemporânea 2024 trouxe produções cênicas que giraram em torno da Memória. Antes de assistir os espetáculos, lembrei e escrevi, como um bilhete endereçado a mim mesmo, aquela frase de Waly Salomão: A memória é uma ilha de edição. O verso do poeta, de alguma maneira, foi um estralo para experienciar os espetáculos “Between me and you” e “No hay banda”. É sobre essas produções que gostaria de falar e também, a partir delas, fazer possíveis contornos sobre memória e suas encenações. Essa crítica é também, em si mesma, um exercício singular de lembrar, esquecer e, entre um lapso e outro, mapear, nas diferenças e similaridades dos espetáculos, os silêncios, a velocidade de uma palavra, a temperatura de um gesto, alguma coisa que sempre fica e alguma coisa que sempre escapa.
Quero pensar os dois espetáculos como um outro jeito de pensar o arquivo. O arquivo-cênico “Between me and you” e “No hay banda” – o palco que experienciamos e o corpo dos performers – não está parado, fixo, imutável. O arquivo da memória não é um contêiner de escrituras empoeiradas, mas um território sempre em produção de recombinações de lembranças, palavras, gestos, lapsos e afetos. Os espetáculos parecem fazer uma inversão: não é o arquivo que é o depositário de memórias, mas as memórias são, para voltar ao verso de Waly, uma ilha de edição, uma ilha que curta-circuita e movimenta os flashs do próprio arquivo.
Isso, para trazer uma concretude ao que que estou tentando formular, pode ser percebido na primeira parte de “Between me and you”: a artista canadense Heidi Strauss disponibiliza no chão do palco um arquivo de peças rotineiras de roupas do pai, da mãe e do irmão. Depois de contar a memória das peças, ela pede para que nós façamos combinações entre a bermuda, a saída de praia, a calça, a camiseta. Ela então veste as combinatórias propostas e, nesse gesto, sacode a poeira do arquivo da lembrança. Na combinação do vestuário, é como se pudéssemos, juntos a ela, montar, desmontar e remontar o quebra-cabeça do que fica e do que desaparece. Depois de decidir ficar com uma combinação de peças, o próprio corpo coloquial de Strauss curta-circuita – é como se ela nos lembrasse que corpo é memória e memória é corpo. Rememorar é poder ter o corpo vivo inscrito no espaço-tempo do Aqui.
Martín Flores Cárdenas expõe a memória da memória da morte do avô. O espetáculo-arquivo acontece na tentativa de refazer alguma coisa que restou da ondulação do primeiro espetáculo sobre o trauma feito por ele e uma banda de teatro. Agora não existe a banda (No hay banda!), existe o resto do resto, o eu-sozinho reencenando alguma coisa que persiste – a lembrança do avô morto escorregada na lembrança da primeira montagem, do teatro. Estou diante do sujeito que precisa encarar a trama do trauma na solidão do si em luto. Estou diante do gesto de montagem e remontagem do arquivo da memória do avô morto confundido com a montagem e remontagem do fazer teatral. Nesse sentido, parece que No hay banda! é, ao mesmo tempo, uma tentativa de lembrar e uma tentativa de encenar a lembrança da lembrança.
O teatro é a ilha dos vestígios. Cárdenas dirá, no início, que o que veremos não é necessariamente um espetáculo de teatro. Mas é. É um outro teatro que, no glossário da polifonia do contemporâneo, é exercitado menos como representação e mais produção de restos de si. Nos dois espetáculos, não há uma vontade de representar a memória, mas produzir mais vestígios a partir dos vestígios, ou seja, aumentar o arquivo e a rentabilidade do im-possível da memória.
Strauss vai dizer que ela começa e termina Between you and me com as mesmas perguntas. Acho que isso diz muito do que se pode flagrar nos dois espetáculos: o que assistimos são documentos provisórios, às vezes contorcidos, às vezes rasurados, mas sempre cheio de perguntas.
A memória é uma ilha de perguntas?
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