“Atenção, é necessário que eu diga: não teremos ilusão nessa peça”
“Atenção, é necessário que eu diga: não teremos ilusão nessa peça”
Por Raíssa Frazão
Crítica a partir do espetáculo “Farinha com Açúcar”, do Coletivo Solos Negros (DF), visto em novembro de 2024, na programação da Semana Universitária da UnB, no Departamento de Artes Cênicas da UnB.
Durante a Semana Universitária, realizada em novembro do ano passado, tive a oportunidade de admirar o incrível trabalho solo de Gabriel Matos, o ator que nos conduziu, durante 40 minutos, pelo espetáculo “Farinha com Açúcar”. Criada em 2023 pelo Coletivo Solos Negros (projeto de extensão do Departamento de Artes Cênicas da UnB), a montagem é uma releitura da peça “Farinha com Açúcar”, escrita por Jé Oliveira (SP).
“Farinha com Açúcar ou Sobre a Sustância de Meninos e Homens” é uma obra provocativa que aborda, em sua versão original, a construção de identidades masculinas negras na periferia de São Paulo. Em sua primeira montagem, realizada em 2016, o Coletivo Negro (SP) apresentou uma reflexão poderosa sobre a questão racial no Brasil. Pensada como uma “peça-show”, a obra é um tributo à influente banda Racionais MC's, com uma narrativa que se desdobra da morte para a vida. O texto de Jé Oliveira recebeu o 6º Prêmio Questão de Crítica em 2017 e foi selecionado pelo Palco Giratório do SESC em 2018.
A peça narra a vivência de um homem preto periférico que luta para estar vivo. Na versão realizada em Brasília pelo Coletivo Solos Negros, o ator Gabriel Matos aborda a narrativa do texto “Farinha com Açúcar”, no que se refere ao êxodo rural de São Paulo, em diálogo com uma prática semelhante ocorrida no contexto da construção de Brasília. Ao mesclar a versão original do texto à sua trajetória na cidade Planaltina – a primeira região administrativa do DF –, o enredo da versão do Coletivo Solos Negros é criado a partir das realidades vividas por um homem preto dentro de uma quebrada de Brasília. Planaltina é uma cidade do século XIX que foi incorporada ao Distrito Federal com a criação de Brasília para abrigar pessoas que construíram a capital, pessoas que tiveram seus sonhos ceifados... Planaltina é uma cidade com muitas histórias vindas de outros estados e, na montagem, nos deparamos com a história de Gabriel Matos.
No início da peça, entramos no espaço cênico ambientados por uma música que nos conecta a um estado meditativo; uma música calma que nos abraça para recebermos a realidade nua e crua da peça.
Algo que me comove positivamente durante a apresentação é que em três momentos do espetáculo somos avisados do seguinte comentário: “Atenção, é necessário que eu diga: não teremos ilusão nessa peça”. Trata-se de uma frase que mostra a urgência da expressão de Gabriel no decorrer do espetáculo, de modo semelhante ao que diz o grupo Racionais MC's na música “Negro Drama”:
“Desde de o início, por ouro e prata
Olha quem morre, então
Veja você quem mata
Recebe o mérito, a farda que pratica o mal
Me ver pobre, preso ou morto já é cultural”
Será que temos o poder de estarmos vivos?
O povo preto não tem direito de escolher permanecer. Em diversos filmes, peças, séries e novelas, o homem preto é visto como marginal e isso não fica só nas telas; isso vai para vida real e Gabriel mostra com muita fidelidade como é difícil perder alguém que não teve a escolha de sobreviver. Como diz a banda Atitude Feminina na música “Enterro do Neguinho”:
“Quem se lembra do neguinho da favela
Que quis morrer na batalha, do que
viver numa cela”
Trata-se de persistir para estar vivo; não importa qual roupa, carro ou pessoas que estão com você o nosso corpo sempre é visto como marginal. Para deixar isso evidente, Gabriel traz em suas vestimentas roupas que se equiparam às nossas, como uma bermuda e uma corrente enorme que nos remete a época do Funk ostentação dos anos 2010. A bermuda, porém, nos conduz para outra realidade; ele utilizou placas de imóveis disponíveis à venda para fazer sua bermuda, o que nos faz voltar para o imaginário da rua, do trabalho, do esforço e do suor.
Por estar apenas com dois elementos em seu corpo, qualquer estímulo corporal ficava extremamente visível em cena. Sua interpretação jorrava através do suor que nos banhava de emoção. Prova disso é o fato de que a sonoplastia de cada apresentação era acompanhada de alguns soluços que vinham da plateia, pois muitas vezes a verdade é difícil de ser digerida.
O ator conduz a dramaturgia como um tom intimista, nos ambientalizando sobre sua família. Há uma distância da obra original de “Farinha com Açúcar” pois o repertório musical não é o mesmo elencado pelo texto. Nesse ponto, vemos a marca de Gabriel em cena (E COMO É BOM TER VER EM CENA), pois o ator não deixa de pontuar o que marcou a sua jornada pessoal. Em muitos momentos da peça, o foco de luz está sobre sua cabeça, dando a ideia de um interrogatório. Como observa a artista Amanda Reis, integrante do coletivo Solos Negros: “a peça ja faz parte dele, fica muito dificil saber o que é texto [original] e o que não é”.
O corpo de Gabriel se move com urgência para gritar pelos que estão por vir e pelos que já foram. Por meio da iluminação, enquanto o ator se movimenta, sua sombra o deixa maior, o que transmite a sensação de também estarmos na cena também, junto dele.
Um aspecto positivo de estar em uma peça apresentada na Semana Universitária da UnB é perceber a importância da roda de conversa pós-espetáculo, pois é necessário acolher a dor de quem assistiu à obra e sofre o racismo diariamente. Vi muitas pessoas chorando ou reflexivas pela temática abordada, por isso, repito: “Atenção, é necessário que eu diga: não teremos ilusão nessa peça”.
“A DOR QUE DURA A CANA NÃO CURA”. O medo diário de um homem preto é perceber que é o alvo diariamente, e sabemos que dentro dos presídios há muita gente inocente, é com essa frase que trago essa reflexão. Sei que muitas vezes o diálogo sobre estar entre a vida e a morte pode parecer meio banal, mas a dualidade entre os tempos de calmaria e fritação do corpo do ator Gabriel Matos me levou ao lugar de se lutar para estar vivo e é o que um homem preto faz na sociedade brasileira.
E aí, vai querer saber se fulano morreu de morte morrida ou de morte matada?…
FICHA TÉCNICA
Atuação: Gabriel Mattos
Preparação corporal: Ivana Motta
Figurino e Adereços: Luazi Luango
Arranjos musicais e efeitos sonoros: Glauco Maciel
Produção: Nugoli
Assistente de produção: Deborah e K7
Fotografia: Isaac Batista
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